Comunidades São Paulo no Rio Tiquié e Santa Rosa, no Içana
Depois de quase dois anos, aguardando a possibilidade de estarmos novamente navegando nas águas do Rio Negro, partimos para encontro com as comunidades indígenas que habitam o norte do Amazonas, mais especificamente na diocese de São Gabriel da Cachoeira, região conhecida como “Cabeça do cachorro”, fazendo divisa com a Venezuela e Colômbia.
Nossa equipe, formada pela Honeide, Ingrid, Pe. Raymundo e eu – Catapan, já nos conhecemos há um certo tempo. Estivemos juntos no Sínodo para a Amazônia, em outubro de 2019.
A programação já estava sendo esquematizada para visitarmos a Comunidade de Santa Rosa, no Içana, mas foi enriquecida com o convite da Associação Atriarte do Rio Tiquié, que gostariam de somar ideias sobre o funcionamento da associação que lá existe, confecção de projetos e comercialização de produtos.
A viagem ocorreu no dia 25 de outubro de 2021, partindo de Campinas, com destino a São Gabriel da Cachoeira-AM, com uma conecção em Manaus. Fomos recebidos com um almoço na casa de dom Edson, bispo diocesano, no dia 26, que nos disponibilizou o seminário para nos acomodarmos, enquanto estivéssemos na cidade. No seminário, ao lado da igreja dom Bosco, mora apenas o padre Odílio Gentil – diocesano e pertencente ao povo Tucano.No momento, estão sem seminaristas.
Passamos o resto da semana peregrinando, atrás de uma voadeira e motor para subirmos o Rio Negro e Içana, já que a FOIRN – Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – não nos atendeu desta vez. Para quem não conhece uma voadeira, é uma canoa grande, de 8,5 metros, de alumínio, impulsionada por um motor, no nosso caso de 40 HP, que vai numa velocidade razoavelmente rápida, conforme o peso que está transportando. Éramos seis pessoas, mais alimentos e 650 litros de gasolina. Então, bem carregada.Também não tivemos sucesso junto ao ISA – Instituto Socioambiental. Conseguimos uma voadeira, em aluguel, de um indígena que mora em SGC e é aluno da UNICAMP. Junto à Prefeitura, conseguimos um auxílio de 200 litros de gasolina. São necessários 350 litros. A diferença foi comprada por nós mesmos. Lembrando que, para nossa viagem ao Rio Tiquié, tanto a voadeira quanto a gasolina foi disponibilizado já, previamente, pela FOIRN, que tem verba própria para estas atividades.
No dia 31 de outubro, tivemos uma reunião com o Sr. Domingos Barreto, que é da comunidade São Paulo – Alto Tiquié, mas atualmente trabalha como assessor, ou diretor, na FOIRN. A conversa girou em torno de vários assuntos, desde o papel nocivo das igrejas evangélicas, que têm na figura do pastor, o substituto aos pajés e caciques, como também o papel da igreja católica, sobretudo os salesianos que trabalham na região há mais de cem anos.
Domingos foi aluno dos salesianos. Aprender a ler e escrever era condição para se ter empregabilidade e sucesso na vida. Junto aos salesianos era proibido falar a língua nativa. Os padres já organizavam os produtores em associações, compravam o barco para o transporte de pessoas e produtos, mas controlavam os negócios.
Chegou o momento em que os produtores resolveram criar sua própria associação. Assim surgiu a ATRIARTE, no início da década passada, meio que na teimosia, com todo tipo de questionamento sobre o controle etc… De qualquer maneira, a associação foi criada pelos que apoiam.
Sr. Domingos falou um pouco sobre a comunidade São Paulo: afirmou que a qualidade de vida do povo não é boa; muito desabitada; as famílias se mudam para Pari Cachoeira ou SGC para o estudo dos filhos. Ao longo do rio, são 135 comunidades, tendo em Pari Cachoeira a maior concentração de pessoas. A falta de alimento é o fator mais preocupante.
Quanto a demarcação das terras, são todas demarcadas, não por etnia, mas sim como um território único.
Que fazer para se buscar uma qualidade de vida dos habitantes? Veem necessidade de se estabelecer um plano de gestão territorial e ambiental, com a ajuda dos próprios filhos, rediscutindo projetos já tentados sem sucesso. Entendem que devem buscar as soluções a partir deles mesmos. Neste momento, buscam uma maneira de obter mais renda, desenvolvendo um comércio mais eficiente, já que produzem frutas como ingá, cupuaçu, assaí, bacaba, abacaxi, etc.
Assim foi nossa reunião com Sr. Domingos Barreto, que aconteceu no seminário.
No dia 01 de novembro, iniciamos nossa viagem com destino a comunidade São Paulo, numa voadeira sem capota e sem salva vidas, comandada pelos nossos amigos pilotos, o Rafael e Ezequiel. Depois de encararmos sol e chuva, dormimos numa cabana da comunidade chamada Matapi, colado a um cemitério indígena, com muitas velas acesas e protegidas por causa de uma garoa, sob o brilho da lua. No dia seguinte, visitamos as irmãs salesianas em Taracuá. Alegramo-nos em reencontrar a irmã Mariluce, que esteve no Sínodo e com quem comemos uma pizza, em Roma. Também conhecemos o padre Luiz, que ali trabalha no projeto “igreja irmã”. Ele é da diocese de Bauru (SP). Depois, entramos, propriamente, no rio Uapés e depois no Tiquié.
A primeira comunidade a ser visitada foi da etnia Hupda, que nos ofereceu um saco de peixes maquiato (defumado) e como escambo receberam, no nosso retorno, sacos de farinha, que é o que eles necessitam. Ficaram nos esperando na beirada do Uapés por alguns dias, até que nós ali aparecêssemos. Esta comunidade é beneficiaria de alimentos comprados com recursos enviados através da conta do padre Darcy, benfeitor e pároco da igreja Nossa Senhora de Fátima da diocese de Campo Limpo, São Paulo e que chegam até eles pelas mãos da irmã Mariluce.
É viagem que segue, mais sol, mais chuva e mais uma noite ao som dos animais da floresta em uma comunidade ribeirinha. No dia seguinte, lá pelas 13 horas, enfim, chegamos na comunidade São Paulo.
Depois das boas vindas, armamos nossas redes debaixo da casa do Sr. Francisco e Sueli. Conhecemos Antônio, líder da comunidade e fizemos um giro, conhecendo as casas e visitando algumas famílias. Conversamos com a família do Sr. Américo, que descascavam mandioca para a farinha, inclusive com trabalho de pequenas crianças usando facas.
À noite , a partir das 20 horas fizemos uma atividade, uma dinâmica que consistia em levantamento das “coisas boas”e das que “precisavam de melhorias”. Poderíamos chamar de um mapa da região, com atividades e desejos.
Utilizando o método freiriano, buscamos deles as qualidades de seu habitat:
- valorizam a escola, atividades escolares, planejamento sempre em conjunto, as festas culturais, roça e produção de farinha, missa, rituais, benzimento, religião, convivência, trabalhos comunitários e familiares, jogos de bola, venda de produtos, banho no rio, enfim, uma vida boa.
E as coisas que precisam melhorar? - a própria escola, ter energia elétrica com internet, ter uma boa escola de ensino médio em Imaculada com transporte, falta constante de merenda escolar e materiais didáticos, oferecimento de novos cursos, como panificação e orientação agrícola.
- na agricultura, melhorar a valorização da farinha e frutas, melhorar a produção e comércio, as roças são distantes, o que dificulta o transporte dos produtos, repensar ou reorganizar a piscicultura, já que a região não é boa em peixes.
- na questão cultural, sentem que estão perdendo suas tradições e cultura. Portanto, precisam resgatar. Resgatar, também, a medicina ancestral e seus remédios. Resgatar os instrumentos musicais. Excesso de bebidas e suas consequências são mais uma angústia.
- o transporte é um problema: alto custo dos combustíveis, pois em Pari Cachoeira, o litro de gasolina já está em R$ 13,00. ( Em SGC está em R$ 7,09 e em Campinas R$ 6,39).
No dia 04 de novembro, depois da missa às 7,00 horas, tivemos um café comunitário, inclusive para trabalhadores contratados que fazem o piso de um novo centro comunitário, ou Nova Casa do Saber – pena, poderia ser de chão batido, mas o cimento já chegou lá. Após o café, apreciamos danças das crianças e, em seguida, o início das atividades.
Eles querem energia elétrica, com placas solares (energia fotovoltáica). Isto é possível. Uma tarefa para a equipe MAWAKO, fazer contato com parlamentares, de modo a ver possibilidade de fundo perdido para umas 20 residências. Após a energia, ver possibilidade de uma internet boa para uso escolar.
Foi falado que existe até barco movido a energia solar. Para os indígenas, um sonho. Sabemos que a concretização não depende deles, nem da equipe de assessores.
Levantaram o problema: as comunidades estão desaparecendo, uma vez que as famílias se deslocam para a cidade (SGC principalmente e Pari Cachoeira) para que os filhos tenham oportunidade de estudo.
Crianças de primeira alfabetização são transportadas para comunidades que possuem escola. Acontece, porém, que a prefeitura tem reduzido muito a quantidade de combustivel, ou mesmo não fornecendo, o que impede a alfabetização, bem como até repercute no direito ao Bolsa Família (agora Auxílio Brasil).
A merenda escolar, dificilmente chega às comunidades, vinda de SGC. Então, fica ao encargo das mães providenciarem as merendas para suas crianças ( sucos e farinha ).
Por vezes, muitas pessoas de outras regiões do Brasil, pensam que as crianças, os jovens indígenas não tem também seus sonhos. Perguntamos, e eles expressaram o que está dentro de seu coração: sonham com cursos de marcenaria, motor de barco, panificação, informática, corte e costura, artesanato, instalação e manutenção de placas solares, auto escola, curso de aviação, desenvolvimento agrícola, gestão administrativa, produtos de limpeza, fazer sabão, piloto de barco, veterinária…… São sonhos que todo jovem tem direito a ter. Alguns dos sonhos são possíveis de serem realizado nas comunidades, outros, nem tanto, mas devem ser, da mesma forma, valorizados e sonhados.
A produção de farinha é vendida em Pari Cachoeira, a R$ 70,00 por lata de 12 kgs. O que poderia ser feito para elevar um pouco a rentabilidade? - com a organização em cooperativas, normalmente os resultados aparecem já que podem vender através de editais e fazer compras de modo global. Para isso, é necessário muita organização, controle e até a contratação de uma pessoa especializada no assunto. No caso a comercialização é coletiva. Também existe a associação das mulheres da ATRIARTE, que já estão mais organizadas. Os produtores possuem uma cooperativa que foi montada, mas não teve sequência de registro. É a COPCIST – Cooperativa dos Povos Indígenas da Comunidade São Paulo. Ficamos de conversar com a advogada do ISA-Institudo socioambiental, que atende as demandas da diretoria da FOIRN, para analisar e assessorar os produtores e produtoras do Tiquié.
- Uma parceria com a Caik (abaixo definida, o que é a Caik) também poderia ser possível, mas a Caik ainda depende de organização, com um administrador trabalhando com exclusividade, precisa de barco, capital de giro, etc… para atender as demandas.
- Existe, ainda , a Associação Amireta – Associação das Mulheres Indígenas – com quem poderiam buscar uma parceria.
- outra maneira de aumentar a rentabilidade seria agregar valor ao produto, no caso de frutas: trabalhar a desidratação, venda em compotas com rotulagem, etc…. Mas é possível caminhar nesta direção somente com uma assessoria inicial.
A parte Cultural deve ser sempre muito valorizada. Na comunidade, até eles queriam fazer mais apresentações de música e dança, mas por uma questão de tempo, elas foram reduzidas. Todos estão cientes que, perdendo a cultura, perdem também sua força. Sentem falta de instrumentos para gravação de músicas (sonhos), pois só com a oralidade, muita coisa se perde. Gostariam de filmar suas atividades musicais e de dança. Quem sabe, um dia, poderia se ter a TV CARACOÍ , a ser mostrada através do Youtube, para divulgação de tanta coisa bonita que eles tem para nos ensinar……
Será que os jovens, quando vão estudar fora, voltando às suas comunidades, eles preservam suas culturas originais? Nem sempre.
Eles relataram que antropólogos passaram pela comunidade e levaram consigo vários objetos culturais que pertenciam à comunidade. Também reclamaram que os padres salesianos, em tempos passados, destruíram sua cultura, já que tinham por missão a imposição da religião católica, mesmo que os nativos não entendessem muito o que estava acontecendo.
Contudo, os professores tentam resgatar, nas escolas, as tradições, instrumentos e adereços que estavam sendo perdidos e esquecidos.
Foi feita uma atividade com as crianças, uma catação de lixo esparramado pela comunidade. Conseguiram encher dois grandes sacos, o que demonstra que muita coisa é jogada no ambiente. Foi orientado, como separar o lixo, cuidando para que não vão parar no rio. Tem que armazenar, mesmo que seja por prazo indeterminado, mas não se pode deixar poluindo o ambiente. Esta orientação foi passada. Vamos ver se compraram a ideia.
Falamos também da saúde. Como não tem acesso a medicamentos, o único recurso que possuem é a floresta, que é rica em medicina. Mas quem se interessa por aprender sobre as plantas? Os jovens? Poucos, infelizmente. Outro recurso é o benzimento. Muitos, contudo, cobram pelo “serviço”. Informaram que, benzimento cobrado não pega. Esta é uma relação comercial.
Uma das atividades que existia, antigamente, era socar padu (folha de coca). Todos se reuniam para a atividade no final da tarde, socavam e bebiam. Depois iam tomar banho no rio. Hoje… cada um na sua casa, não praticam mais este ritual.
Uma denúncia grave, nós ouvimos de um indígena baniwa (Sr Marino da comunidade Inhambu). Ele afirmou que um pastor da comunidade Colina, do Alto Tiquié, está com atividade de garimpo e turismo. Como troca, para conquistar a comunidade e comunidades vizinhas, ele constroi casas, malocas e, como não podia deixar de ser, igrejas. É uma tristeza sem tamanho o que está acontecendo, muito embora sabemos que as comunidades do Tiquié, quase todas são católicas, mas os evangélicos já estão avançando.
Antes de retornarmos a SGC, visitamos duas outras comunidades: Caruru Cachoeira e São Pedro, já na divisa com a Colômbia. Em São Pedro tivemos oportunidade de conversarmos com a comunidade que estava reunida em assembleia, mais ou menos 120 pessoas. Como não pudemos tomar muito o tempo deles, tivemos apenas uma palavra de incentivo, para nunca perderem a esperança na juventude e tomar consciência do nosso momento difícil de nosso Brasil, com uma política genocida, principalmente contra os povos originários. Como no ano que vem teremos eleições parlamentares, para governo de estado e presidencia do País, que todos procurassem conhecer os candidatos e escolher aqueles que apresentaram, no passado, trabalhos concretos em favor dos povos indígenas. Que esqueçam quem governa somente para o agronegócio, mineradoras ou banqueiros. Que esqueçam quem destrói a floresta e quer exterminar as comunidades. Eles tem acesso às redes abertas de televisão. Então sabem o que se passa no Brasil. Cremos que o recado ficou claro.
Depois de dois dias e meio ouvindo e somando ideias, acho que alguma coisa ficou alinhavada: O MAWAKO ficou de pesquisar sobre placas solares (energia fotovoltaica); No IFAM, em SGC conversamos com a professora Andreia, que já agendou para julho de 2022, cursos presenciais de Administração e informática. Curso agrícola não ficou confirmado, pois necessita ser ministrado na própria comunidade. Outros cursos, como panificação e culinária, compota de frutas , corte e costura, ficaram para uma outra oportunidade, quem sabe a se pensar em alguma coisa em 2023.
No dia 06, nas apresentações de danças de despedida, foi solicitado que o padre Raymundo celebrasse na manhã seguinte, dia 07, mesmo que fosse muito cedo, já que nossa intenção era aproveitar bem o dia de navegação. E foi uma missa muito especial, pois o padre Raymundo comemorava 35 anos de ordenação sacertotal, ele que pertence à Congregação dos Cônegos Lateranenses. Importante comemoração para o Raymundo, mas muito mais para a comunidade de São Paulo, que se sentiu privilegiada em celebrar juntos uma importante data na caminhada do padre Raymundo. Aprendemos com as crianças: - A terra é meu corpo
- Água é meu sangue
- Ar é meu respiro
- Fogo é meu espírito
Retornamos, em dois dias para SGC, fazendo uma única parada para dormir, em Taracuá, onde jantamos e tomamos café da manhã com as irmãs salesianas. Passamos, ainda , na comunidade Hupda, para entregar o produto de escambo (farinha) em troca dos peixes que apanhamos na nossa viagem de ida.